Medicina Dentária e Mindfulness

Manuela Rodrigues
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23/3/24
“Dominar áreas de conhecimento diferentes e ter as (muitas) competências diversificadas para garantir o bem-estar físico, psicológico e emocional do paciente, ao mesmo tempo que executo um tratamento exigente, dando a impressão que está tudo bem e é fácil. Sinto-me exausta.”


Não há colega que não se reveja nesta afirmação, em algum ponto da sua carreira. Nos estudos sobre stress na Medicina Dentária, as causas e a sua distribuição, permanecem notavelmente consistentes ao longo do tempo. A incisiva afirmação acima referida, poderia ser dita por um/a colega na Holanda, nos Estados Unidos ou na Austrália, nos anos 80, 90 ou agora. Foi feita por uma colega portuguesa num inquérito que realizei, no ano passado, para avaliar o stress dos Médicos Dentistas em Portugal, e como lidam com o stress inerente à profissão.


Um dado curioso foi o da palavra paciente ser referida 242 vezes como causa de stress. Ter de lidar com o stress dos pacientes, o ser causador de dor e ansiedade ao paciente, a falta de cooperação de pacientes, a responsabilidade em relação a um trabalho bem feito que cumpra as expectativas do paciente, ou a falta de reconhecimento e/ou valorização do trabalho pelos pacientes, são só alguns exemplos de como aqueles a quem servimos são também a nossa maior fragilidade.
A Medicina Dentária centrada no paciente convida-nos a cuidar da pessoa e não só dos dentes, mas a realidade é que muitos Médicos Dentistas não se sentem preparados para lidar com as emoções que surgem durante o tratamento dentário. As emoções do paciente e as nossas.


Tudo isto tem custos para o profissional e as consequências podem ser físicas, mentais ou pessoais. Distúrbios musculares e esqueléticos, doenças cardiovasculares, ansiedade, exaustão, insatisfação no trabalho, adições, a diminuição de sensibilidade para pacientes ansiosos, burnout, e até mesmo o suicídio, estão bem descritos na literatura e nomeados por colegas com quem falo diariamente. Bem diferentes são as respostas quando pergunto o que fazem para lidar com esse stress. Quais as armas que possuem para fazer face ao que lhes rouba a alegria de trabalhar? Para a pergunta de quais as estratégias que utilizam para melhor lidar com o stress profissional, a resposta mais frequente no inquérito foi: nenhuma.

O conceito de uma prática clínica sem stress ou de um Médico Dentista sem stress não é realista, ou até desejável, porque vai existir sempre stress intrínseco à profissão. Mas os Médicos Dentistas precisam de saber como aliviar tanto o stress psicológico, como o fisiológico para que estes não se tornem incapacitantes. Em vez de ficarmos presos à reatividade em modo de “luta ou fuga”, podemos aprender a desligar o piloto automático e a trabalhar com uma presença natural.


Mindfulness, ou atenção plena, a consciência que surge ao dar atenção, de propósito, ao momento presente, sem julgamento, e as práticas que o cultivam, são essenciais para o profissional, e para prestação de cuidados centrados no paciente, em vários aspetos: 1) ajudam o profissional a aliviar tensões a que estão sujeitos e fornece equilíbrio ao profissional durante momentos de stress;  2) estão associados à diminuição de depressão e ansiedade nos profissionais 3) desenvolvem as qualidades de um profissional de saúde centrado no paciente; 4) orientam para as ações necessárias para atender às necessidades do paciente; 5) fornecem técnicas que os próprios pacientes podem usar para encontrar o equilíbrio em momentos de stress 6) desenvolvem autoconsciência, aceitação, discernimento, compaixão e autocuidado no profissional 7) são a base para o desenvolvimento de inteligência emocional, assertividade e resiliência, qualidades necessárias para estarmos preparados para lidar com as emoções que surgem durante o tratamento dentário.


Se integrarmos os princípios do mindfulness no nosso trabalho diário, vamos ser Médicos Dentistas mindful. Isto traduz-se de uma maneira prática em:

  1. Dar atenção. Apesar desses desafios, a atenção nas consultas com os pacientes ou nas reuniões com os colegas, é uma obrigação profissional. Quando deixamos de dar atenção estamos, na verdade, a falhar como profissionais. As técnicas de mindfulness treinam a atenção, foco e concentração. E não só para o que estamos a fazer e a quem está à nossa frente, mas também dar atenção aos pensamentos, às emoções, às sensações corporais, à respiração. Isto ajuda a ouvir com atenção, observar com atenção, a estar presentee tomar decisões mais conscientes.
  2. Responder em vez de reagir. O primeiro passo para responder não é ação, mas consciência. Quando confrontados com situações difíceis, experimentem fazer uma pausa e permitir a escolha de uma resposta útil, em vez de reagir automaticamente (geralmente sem qualquer consciência).
  3. Observar os pensamentos. Pensamentos de stress aumentam a tensão muscular. A amígdala não faz a distinção se o stress é real ou não, as hormonas do stress, adrenalina e cortisol, são libertadas. Se praticarmos atenção plena e a autoconsciência dos pensamentos, vamos conseguir interromper esta sequência cedo e podemos abordar os desafios clínicos com mais calma interior, assumir o controle e a ação decisiva de um lugar de clareza e estar presente para o que realmente está a acontecer.
  4. Reconhecer quando estamos em piloto automático. O hábito de estar perdido em pensamentos também pode significar que perdemos as partes do nosso trabalho que fazem a diferença: a subtileza da comunicação, a alegria de ser criativo, uma oportunidade de resolver um problema de uma maneira diferente, ou um olhar de gratidão. Quantas outras coisas estão a perder?
  5. Completar o ciclo de stress. Onde é que nós, como Médicos Dentistas, nos esquecemos de completar o ciclo de stress? Muitas vezes, passamos a maior parte do nosso dia, com um estado cronico de ativação do Sistema Nervoso Simpático. A atenção consciente ao Sistema NervosoParassimpático traz o pêndulo de volta ao centro. Respirações profundas e relaxamento muscular intencional são as ferramentas mais acessíveis para ativar o SN Parassimpático e fechar o ciclo.
  6. Compaixão. Raramente estamos cientes disso, mas os nossos julgamentos podem afetar o nosso trabalho, produtividade e criatividade. Para a maioria dos Médicos Dentistas, os hábitos de auto julgamento são bastante persistentes. Se conseguirmos acalmar o nosso crítico interior, podemos reprogramar o nosso cérebro para compreensão e conexões mais profundas.
  7. Investir no bem-estar mental. Praticar exercícios de respiração, praticar estar presente, meditar diariamente, praticar exercício físico, ter uma rotina de autocuidado, saber reconhecer os sinais de alarme, ter atividades que produzam contentamento, saber descansar, rir.

O que faz a distinção entre um Médico Dentista e um Médico Dentista excecional? Ambos têm capacidades técnicas; no entanto, quem investir no desenvolvimento de capacidades que lhe permitam maximizar os seus recursos pessoais é o vencedor. Qualidades como autoconsciência, inteligência emocional, assertividade, compaixão ou escuta ativa podem ser desenvolvidas e reforçadas com uma prática regular de mindfulness. Todas estas qualidades, são qualidades humanas e essenciais se queremos tratar pessoas e não só dentes, e se queremos viver a nossa profissão de uma maneira saudável. O mindfulness é uma ferramenta simples e eficaz que deve fazer parte da prática clínica diária.  Até quando a vamos deixar fora do consultório dentário?

Manuela Rodrigues
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23.3.24
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